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20 anos sem Aracy de Almeida


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Araci [Teles] de Almeida nasceu em 19 de agosto de 1914 (mesmo ano de Dorival Caymmi), cresceu e foi criada no subúrbio carioca do Encantado, numa grande família evangélica; o pai, Baltazar, era chefe de trens da Central do Brasil e a mãe, dona Hermogênea, dona de casa. Tinha apenas irmãos homens. Aracy foi colega do futuro pastor e radialista Alziro Zarur em seu primeiro colégio, no Engenho de Dentro, mudando-se em seguida para o Colégio Nacional, no Méier. Ainda de forma amadora, cantava hinos religiosos na Igreja Batista, pontos em terreiros de macumba e músicas de carnaval no bloco Somos de Pouco Falar. Registra-se uma única ligação conhecida em sua vida: Aracy foi casada com um goleiro do Vasco da Gama (Rei), de quem se separou alguns anos depois. Seria, pelo resto da vida, uma solteira convicta, vindo a cunhar a famosa imagem do sabonete: "Acho esse babado de casamento uma onda bastante enrolada. No começo, são flores e mais flores. Depois, pedras e espinhos. Todo o dia a mesma toalha, o mesmo sabonete. É fogo."

Como Millôr Fernandes, também morador do Méier, muito cedo tomou noção de seu talento, valorizando-o profissionalmente desde sempre ("quem canta de graça é galo"). Ainda adolescente foi cantar nas rádios, trabalhando na Philips, onde fez dupla com Silvio Caldas no Programa Casé, e na Ipanema, onde chegou a excursionar com Carmen Miranda no Rio Grande do Sul. Através de um amigo comum, cantou Bom Dia, Meu Amor para Custódio Mesquita, o que lhe abriu caminho para a Rádio Educadora (futuramente, Tamoio), onde caiu na lábia de Noel Rosa.

Era 1933, e Noel a convidou para umas cervejas na Taberna da Glória. Foi o início de uma bela amizade, o batismo de fogo profissional e uma influência perene: "Apesar da minha pouca idade, achava Noel um fenômeno. Passei a andar atrás dele porque estava interessada em aparecer - quando você tem pouca idade acredita nessas besteiras. Ele pegava da viola e eu cantava, em casas suspeitas, atrás do Mangue, no baixo meretrício. Sua voz era fraca e ele estava a fim daquelas mulatas. Os dias em que convivi com Noel nesta terra foram dias muito engraçados." Nessas incursões noturnas, ergueu brindes com Mário de Andrade ("um matusquela") e figuras cujo nome o tempo perdeu, restando apenas registros como Saturnino, Zeca Meia-Noite, Brancura, Miguelzinho da Lapa. Tudo gente boa.

No convívio com Noel, Aracy forjaria o particularíssimo e expressivo dialeto com que se expressou pelo resto da vida, linguagem permeada de gírias e sintaxe recriada pela malandragem. Só amizade, Aracy? "É bom deixar dessas mumunhas e ficar claro que eu sempre fui uma mulatinha de bofes azedos, baixinha e que de bom só tinha a voz. Noel gostava de mim, no botequim. Pra cama ele só levava mulata grandona".

Gravou o primeiro long-play em 1934, pela Columbia, e assinou o primeiro contrato em 1935, com a Rádio Cruzeiro do Sul, onde gravou Seu Riso de Criança, composição de Noel Rosa - o início da parceria que faria dela sua intérprete símbolo, a apenas dois anos da morte de Rosa. São delas os primeiros registros de Triste Cuíca, Cansei de Pedir, Amor de Parceria, muitos deles definitivos. A dureza dos primeiros tempos de rádio renderia memórias inesquecíveis ("Uma vez, o Kid Pepe me encostou uma faca deste tamanho na barriga, querendo me obrigar a gravar uma batucada de autoria dele, chamada O Que Tem, Iaiá. E eu gravei, compadre, com a faca na barriga e tudo."), únicas de quem pode reivindicar o posto de testemunha e pioneira: "O Mario [Lago] fica doido de raiva quando eu digo, mas a idéia da Amélia fui eu quem deu. Um dia, sugeri uma frase, 'Amélia é que era mulher de verdade', ao Wilson Batista. Ele disse que andava sem tempo para compor e então o Ataulfo, que estava perto, pediu a frase para o Mario, e o samba foi feito. Tem mais. Dou até o local onde aconteceu: na Leiteria Nevada, ali na rua Bittencourt da Silva."

Seu repertório não se resumiria, entretanto, a Noel, tendo se destacado como cantora de sambas e gravando, ao longo da década seguinte, músicas de Davi Nasser, Ary Barroso ( a notória Camisa Amarela), Haroldo Lobo, Assis Valente, além de marchas de carnaval. O próprio Ary Barroso a teria escolhido para gravar originalmente Aquarela do Brasil, que, por um desacordo, acabou caindo nas mãos de Chico Alves. A fama acabaria a levando ao palco da famosa boate Vogue, onde se apresentou em espetáculos noturnos entre 1948 e 1952 - Aracy gravaria em 1951 um disco que resgatou ao público a obra de Noel Rosa, solidificando-a como intérpretes-símbolo. O Rio de Janeiro era a capital do país, a Vogue era a casa noturna mais famosa e a única sambista a rivalizar com Aracy era Carmen Miranda, que atraíra certa xenofobia da opinião pública depois de voltar dos EUA. Mas a rotina de Aracy era a mesma, toda noite: ao fim da apresentação, pegar o táxi que a levaria até sua casa no Encantado.

É nesta época que estabelece convívio com conhecidos nomes da boemia e meio artístico cariocas, com quem firma sólidas amizades: Di Cavalcanti, Vinícius de Morais, Antonio Maria (que lhe dedicou uma crônica, assim como João Antonio), Paulo Mendes Campos, Fernando Lobo, convívio que lhe rendeu a formação cultural que não tivera na infância - e as melhores histórias de sua mitologia, registradas pelo amigo Hermínio Bello de Carvalho. Conta-se, por exemplo, que Maria e Vinícius, sem idéia para o jingle de um regulador feminino que foram contratados para bolar, recorreram à Imperatriz do Encantado. Ela lembrou-se da melodia de Noel Rosa para "O orvalho vem caindo..." e emendou: "O ovário vem caindo..."

Aracy ouvia ópera ("Adoro aquele berreiro"), jazz e tango; colecionava quadros (de Clovis Graciano, Antonio Bandeira, Heitor dos Prazeres, Aldemir Martins, além do amigo Di), entre inúmeras as quinquilharias que acumulava em sua casa no Encantado (de lustres da Bohemia a tapetes persas), e lia a Bíblia, Augusto dos Anjos e Schopenhauer, acompanhada apenas de sua matilha pessoal de cinco raças de cães ("Não gosto de gente. Eu gosto mesmo é de cachorro"). Estranho caldeirão onde se desenvolveu uma personalidade de tal forma idiossincrática, que levou ao comentário de que ela foi existencialista antes dos existencialistas, hippie antes dos hippies e punk muito antes dos punks, numa época em apenas a combinação de calça comprida e botas na sua indumentária bastava para chocar os costumes (Aracy usava bota por causa de um problema nos pés). De fato, vaidade feminina não era seu forte. Antonio Maria comentou certa vez que ela "corta o cabelo de um jeito que a torna parecida com Castro Alves".

Nenhuma citação traduz melhor o que ela era do que a maneira como respondeu ao "olá" meio para lá do pouco caso do ator Maurício Barroso, defronte à Livraria Jaraguá, em São Paulo, como se estivesse fazendo um favor ao cumprimentá-la: "E eu lá sou mulher de olá?!"

No começo da década de cinqüenta, mudou-se para São Paulo, onde ficou por doze anos. Seu prestígio e sua verve viajaram junto, não se abalando com os elogios com que a cobriu o então governador Jânio Quadros: "Deixa disso, governador. Isso são lantejoulas da sua parte." Seguiram-lhe até São Paulo alguns amigos no "avião dos covardes" (o trem que ligava as duas cidades), quando Piratininga pode asistir in loco histórias que fizeram sua fama. Numa delas, conta-se que, na companhia de Ciro Monteiro e outros bambas devidamente alterados pelos excessos etílicos, Aracy tirou da manga a seguinte a seguinte carta ao se depararam com um vendedor de exemplares do Novo e do Velho Testamento em frente ao Hotel Normandie: "Agora, vou pagar uma rodada de Bíblias!"

Em 1958, antevéspera da inauguração da bossa-nova, a Rainha dos Parangolés gravou pela Polydor o LP Samba em Pessoa. No começo, torceu o nariz para aquele ritmo, mas acabou não chegando a ter conflitos com os baluartes da bossa. Aracy era identificada com a velha guarda, com um certo samba de raiz, "do morro", que seria revitalizado graças à parcela mais politizada dos bossa-novistas, na onda que também evidenciou Cartola (encontrado por Sérgio Porto, lavando automóveis), Carlos Cachaça, Zé Ketti, Monsueto, todos representantes de uma tradição mais popular do que a bossa, fustigada por ser americanizada e elitista. Chegou inclusive a gravar um LP só de sambas pela Elenco, editora símbolo da bossa nova.

De volta ao Rio, em 1964, engrenou uma ótima fase com apresentações na boate Zum-Zum (ao lado Sérgio Porto e Billy Blanco), e no ano seguinte, Samba Pede Passagem no Teatro Opinião, Conversa de Botequim, dirigido pela dupla Miéle e Boscoli, no Crepúsculo; e um espetáculo na boate Le Club. A bossa nova nem tinha se estabelecido e já sofreria grande provação diante do novo veículo que ganhava espaço: a televisão. Começavam os festivais da canção, girando o foco dos refletores para as câmeras de tv, que passariam a empregar o maior número de artistas, muitos deles egressos do rádio. Deve ter sido natural a idéia, naqueles anos amadorísticos e experimentais, de colocar Aracy apresentando um programa de calouros aos produtores da TV Record, e ainda mais divertido vê-la expôr seus maus bofes e malandragem diante de câmeras e refletores.

A partir da segunda metade da década de sessenta, Aracy participou como jurada em vários festivais da canção: já era uma referência. A explosão de novos talentos parecia sinalizar o momento para uma passagem de bastão e ela não perdeu o bonde: "Eu moro lá longe, tenho as minhas cachorrinhas de estimação e não preciso me aborrecer pra trabalhar. Já enjoei de cantar e tem mais: o ambiente não ajuda, e no momento o mingau anda grosso demais..." O azedume da declaração não a impediu de dividir o palco do Teatro Cacilda Becker, em São Paulo, com recém descobertos Jorge Ben, Toquinho e Paulinho da Viola, ou de elevar um desconhecido e cabeludo Caetano Veloso ao rol de seus compositores preferidos. Tinha passado para o banco, mas não deixara de prestar atenção ao jogo.

Ainda na televisão, chegou a trabalhar como jurada na Buzina do Chacrinha, na TV Globo - Chacrinha a chamava de "Dama da Central" -, posto no qual encerraria a vida. Embora tenha sido a sua imagem mais conhecida na posteridade, é de se perguntar quantos espectadores do Show de Calouros (a versão nacional do Gong Show, de Chuck Barris) do Programa Silvio Santos sabia ou, ao menos, desconfiava, que aquela velha coroca e mau humorada tinha andado nos círculos intelectuais de mais prestígio do país, ou que tinha sido intérprete de Noel Rosa. A ranzinzice e o rigor com que julgava os aspirantes ("o matusquela vai levar dez pau") fez dela a mais conhecida e bem paga dos jurados que compunham um plantel dos mais bizarros do audiovisual brasileiro. Pode-se creditar seu mau humor característico a uma combinação de ranhetice da idade, excesso crítico e exigência profissional com a interpretação de uma caricatura perfeita para provocar a audiência. Paradoxalmente, o mau humor aumentou sua ligação afetiva com o público, com quem trocava gentilezas na rua, e acabou tornando-se um grilhão: teve seu pedido de demissão negado, porque era grande responsável pelos índices do Ibope.

Debilitada por problemas físicos, abandonou a televisão na segunda metade da década de oitenta, sendo hospitalizada em função de um edema pulmonar que a levou ao coma por dois dias. Após mais dois dias em lucidez, faleceu. Foi velada no Teatro João Caetano (onde fizera seu último show - do projeto Seis e Meia, com Albino Pinheiro) e seu corpo percorreu, no carro dos bombeiros, diversos bairros freqüentados por ela ao longo da vida: Copacabana, Glória, Lapa, Vila Isabel, Méier, Encantado. Era o adeus final da Arquiduquesa do Encantado, que partiu sem gravar o disco de composições de Cartola sonhado por Sérgio Porto.

Aracy no Show de Calouros com o Sílvio Santos:

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